sexta-feira, 2 de maio de 2014

Capítulo 1 - Thomas




         Thomas tinha problemas para acordar antes da Primeria Hora Desperta. O problema não era bem acordar, mas o que deveria ser feito depois de acordar. O que não havia sido feito antes de dormir também era um problema. Problema este que se tornava ainda maior quando se convergia em “aquilo que deixou de ser feito enquanto dormia”. O que deixava bem claro que tudo não passava de uma grande loucura. Thomas teria compartilhado tal pensamento com seus colegas se já não soubesse que o que é claro para ele nem sempre é claro para seus colegas. Sendo que “nem sempre”, nesta frase, tem o sentido de “quase nunca”. Sendo que “quase”, nesta frase, é uma bondade do narrador. E, para não sucumbir de vez à loucura, Thomas costumava delegar esse tipo de pensamento ao que apelidara de “Caixinha de Problemas Insolucionáveis de Thomas”. Se tal caixinha fosse mesmo um objeto real, Thomas teria gostado de gravar na tampa, logo abaixo do título, o seguinte:


“Problemas Esses Que Thomas Não Conseguiu Resolver Graças à Sua Enorme Incompetência” 


            Assim mesmo, com todas as iniciais maiúsculas que é para dar ares de importância. Para falar a verdade, se tal caixinha existisse, ela não seria muito diferente da pequena caixinha de cima do criado-mudo, dentro da qual Kyo zumbia e contra a qual se debatia todas as manhãs, antes da Primeira Hora Desperta. E era assim que Thomas acordava todas as manhãs.
            Kyo era um besouro de listras alaranjadas que Thomas resgatara há algumas semanas em sua Segunda Refeição. Não que Thomas fosse algum entusiasta dos direitos dos besouros ou coisa do tipo. Simplesmente aconteceu. Estava no refeitório comendo seu ensopado de insetos, como todos os dias, quando percebeu que um deles não estava tão morto quanto deveria. Na mesma hora seu estômago se revirou, precisando fazer um esforço para reprimir a mímica do vômito e não chamar a atenção dos colegas. Olhou discretamente para os lados e constatou que a garota sentada mais próxima continuava a comer sua Segunda Refeição vorazmente. “Seja racional, Thomas”, pensou, “Qual a diferença entre come-los vivos ou mortos, afinal?”. Mas ao olhar para o pequeno caroço cujas patinhas esguias lutavam para não afundar no caldo, Thomas sabia que não seria capaz. Seu estômago deu outra guinada. Não podia continuar encarando o prato por tanto tempo, as pessoas iriam reparar. Lutando contra todo o asco que sentia, agarrou a colher e pescou o besouro. Não podia simplesmente jogar fora, o desperdício era o pior dos crimes. Thomas sabia que mais da metade daquele refeitório trabalharia Horas Dormentes a mais para poder comer aquele besouro. Com as mãos trêmulas, aproximou a colher da boca um pouco mais. O besouro lutava para escapar da colher. “Talvez dê para engolir sem mastigar”. Thomas fechou os olhos. O sinal tocou. Todos os alunos começaram a recolher suas bandejas e evacuar a mesa. Thomas abriu os olhos e soltou a respiração, aliviado. Em um movimento rápido, agarrou uma caixa vazia de bolachas, colocou o besouro dentro e guardou dentro da bolsa. Engoliu o resto do ensopado em um só gole e também deixou a mesa.
            O roçar das asinhas do besouro criava um zumbido que parecia nascer dentro da própria cabeça de Thomas, tamanha a eficácia com que o tirava de qualquer sonho que estivesse tendo. Sonolento, Thomas virava para o lado e afundava o rosto no travesseiro até a altura dos ouvidos, o que abafava um pouco o som, mas nem um pouco o sentimento de culpa por deixar o pobre inseto se debatendo contra as paredes de papelão. Contrariado, acabava por empurrar as cobertas para o lado e levantava-se da cama, por mais sobrehumana que esta tarefa pudesse lhe parecer. E como aquela era uma manhã como todas as outras, Thomas se levantou, esfregou os olhos com força e abriu a tampa da caixa de bolachas para deixar Kyo sair. Enquanto o pequeno inseto esticava suas perninhas em cima do criado-mudo e exercitava suas asas que já não serviam ao propósito de voar, Thomas vestiu o uniforme e se penteou. De todas as variações de uniforme, a que mais odiava era a de Quar. Sentia-se mais patético do que o normal vestindo cinza, como se a cor acentuasse sua total inaptidão para a vida. Ele não tinha certeza, mas tinha alguma coisa a ver com o tom de sua pele.    
            O alto-falante do quarto de Thomas emitiu um zumbido e logo em seguida tocou o sinal que anunciava o fim da Última Hora Dormente e início da Primeira Hora Desperta. Thomas praguejou, a essa altura já deveria estar a caminho da Primeira Refeição. Pelo jeito passara mais tempo divagando sobre caixas invisíveis do que imaginara. Fechou Kyo dentro do pacote de bolachas novamente e guardou na bolsa, se desculpando pelo banho de sol ter durado tão pouco tempo. Não era como se de fato existisse algum sol, afinal.

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