Thomas tinha problemas para acordar
antes da Primeria Hora Desperta. O problema não era bem acordar, mas o que
deveria ser feito depois de acordar. O que não havia sido feito antes de dormir
também era um problema. Problema este que se tornava ainda maior quando se
convergia em “aquilo que deixou de ser feito enquanto dormia”. O que deixava
bem claro que tudo não passava de uma grande loucura. Thomas teria
compartilhado tal pensamento com seus colegas se já não soubesse que o que é
claro para ele nem sempre é claro para seus colegas. Sendo que “nem sempre”,
nesta frase, tem o sentido de “quase nunca”. Sendo que “quase”, nesta frase, é
uma bondade do narrador. E, para não sucumbir de vez à loucura, Thomas costumava
delegar esse tipo de pensamento ao que apelidara de “Caixinha de Problemas Insolucionáveis
de Thomas”. Se tal caixinha fosse mesmo um objeto real, Thomas teria gostado de
gravar na tampa, logo abaixo do título, o seguinte:
“Problemas Esses Que Thomas Não Conseguiu Resolver Graças à Sua Enorme Incompetência”
Assim mesmo, com todas as iniciais maiúsculas que é para
dar ares de importância. Para falar a verdade, se tal caixinha existisse, ela
não seria muito diferente da pequena caixinha de cima do criado-mudo, dentro da
qual Kyo zumbia e contra a qual se debatia todas as manhãs, antes da Primeira
Hora Desperta. E era assim que Thomas acordava todas as manhãs.
Kyo era um besouro de listras alaranjadas que Thomas
resgatara há algumas semanas em sua Segunda Refeição. Não que Thomas fosse
algum entusiasta dos direitos dos besouros ou coisa do tipo. Simplesmente
aconteceu. Estava no refeitório comendo seu ensopado de insetos, como todos os
dias, quando percebeu que um deles não estava tão morto quanto deveria. Na
mesma hora seu estômago se revirou, precisando fazer um esforço para reprimir a
mímica do vômito e não chamar a atenção dos colegas. Olhou discretamente para
os lados e constatou que a garota sentada mais próxima continuava a comer sua Segunda
Refeição vorazmente. “Seja racional, Thomas”, pensou, “Qual a diferença entre come-los
vivos ou mortos, afinal?”. Mas ao olhar para o pequeno caroço cujas patinhas esguias
lutavam para não afundar no caldo, Thomas sabia que não seria capaz. Seu estômago
deu outra guinada. Não podia continuar encarando o prato por tanto tempo, as
pessoas iriam reparar. Lutando contra todo o asco que sentia, agarrou a colher
e pescou o besouro. Não podia simplesmente jogar fora, o desperdício era o pior
dos crimes. Thomas sabia que mais da metade daquele refeitório trabalharia
Horas Dormentes a mais para poder comer aquele besouro. Com as mãos trêmulas,
aproximou a colher da boca um pouco mais. O besouro lutava para escapar da
colher. “Talvez dê para engolir sem mastigar”. Thomas fechou os olhos. O sinal
tocou. Todos os alunos começaram a recolher suas bandejas e evacuar a mesa.
Thomas abriu os olhos e soltou a respiração, aliviado. Em um movimento rápido,
agarrou uma caixa vazia de bolachas, colocou o besouro dentro e guardou dentro
da bolsa. Engoliu o resto do ensopado em um só gole e também deixou a mesa.
O roçar das asinhas do besouro criava um zumbido que parecia
nascer dentro da própria cabeça de Thomas, tamanha a eficácia com que o tirava
de qualquer sonho que estivesse tendo. Sonolento, Thomas virava para o lado e
afundava o rosto no travesseiro até a altura dos ouvidos, o que abafava um
pouco o som, mas nem um pouco o sentimento de culpa por deixar o pobre inseto
se debatendo contra as paredes de papelão. Contrariado, acabava por empurrar as
cobertas para o lado e levantava-se da cama, por mais sobrehumana que esta
tarefa pudesse lhe parecer. E como aquela era uma manhã como todas as outras,
Thomas se levantou, esfregou os olhos com força e abriu a tampa da caixa de
bolachas para deixar Kyo sair. Enquanto o pequeno inseto esticava suas
perninhas em cima do criado-mudo e exercitava suas asas que já não serviam ao
propósito de voar, Thomas vestiu o uniforme e se penteou. De todas as variações
de uniforme, a que mais odiava era a de Quar. Sentia-se mais patético do que o
normal vestindo cinza, como se a cor acentuasse sua total inaptidão para a
vida. Ele não tinha certeza, mas tinha alguma coisa a ver com o tom de sua
pele.
O alto-falante do quarto de Thomas emitiu um zumbido e
logo em seguida tocou o sinal que anunciava o fim da Última Hora Dormente e início
da Primeira Hora Desperta. Thomas praguejou, a essa altura já deveria estar a
caminho da Primeira Refeição. Pelo jeito passara mais tempo divagando sobre
caixas invisíveis do que imaginara. Fechou Kyo dentro do pacote de bolachas
novamente e guardou na bolsa, se desculpando pelo banho de sol ter durado tão
pouco tempo. Não era como se de fato existisse
algum sol, afinal.
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